O livro "Filmar o musicar – Ensaios de antropologia compartilhada" é destaque no Jornal da USP


Autoria: Maykon Almeida • Estagiário do Jornal da USP supervisionado por Silvana Salles
Publicado no site do LISA por Vanessa Munhoz • Comunicação do LISA
Publicação: 02/09/2025


Em novo livro, antropóloga reflete sobre pesquisa compartilhada por meio da produção de filmes
Obra é resultado da tese de livre-docência de Rose Satiko e está disponível para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP

A relação entre antropólogos e interlocutores de pesquisa é um dos temas caros à antropologia e bastante discutido ao longo das décadas. No livro Filmar o musicar – Ensaios de antropologia compartilhada, a antropóloga Rose Satiko Gitirana Hikiji reflete sobre as relações com seus interlocutores de pesquisa ao longo de mais duas décadas de trabalho analisando e produzindo filmes etnográficos. Hikiji é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa). O livro Filmar o musicar foi publicado on-line e disponibilizado gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

Ao longo dos quatro capítulos que compõem o escopo principal do livro, Hikiji rememora sua produção audiovisual no campo da antropologia e articula a ideia de antropologia compartilhada. Trata-se de uma abordagem da antropologia na qual o interlocutor deixa de ser um mero informante e atua direta e ativamente no processo de pesquisa e estruturação dos resultados. A antropologia compartilhada foi proposta por Jean Rouch, etnólogo e cineasta francês que produziu mais de 100 filmes em parceria com as comunidades onde esteve, principalmente na África ocidental. Para Rouch, a antropologia e o cinema eram inseparáveis.

“Desde Jean Rouch, é possível vislumbrar, por meio do cinema, uma antropologia, na qual a produção do conhecimento se dá no diálogo com o sujeito pesquisado, e por meio da qual é possível devolver aos grupos pesquisados o conhecimento com eles produzidos. É a possibilidade de um ‘diálogo com’ em vez de um ‘discurso sobre’”, escreve a docente em Filmar o musicar.

Hikiji trabalha com o tema da música desde o doutorado. Ao compartilhar a antropologia sob a perspectiva de Jean Rouch, a pesquisadora não só partilha o fazer etnográfico com seus interlocutores, mas também apreende, por meio do filme, os seus “fazeres musicais” ou o seu “musicar” – aqui entendido como o “pensar a música para além da obra”, explica a antropóloga.

“A música não é só a obra, ou a performance, ou a peça musical; a música é tudo o que envolve o fazer musical. Ouvir uma música é musicar, fazer o download de uma música é musicar, assistir a uma apresentação musical é musicar”, afirma a professora. A partir dessa perspectiva, ela estudou o “musicar” da periferia de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, e também o “musicar” de artistas africanos, estes em parceria com o pesquisador Jasper Chalcraft, no Projeto Afro-Sampas. “São imagens resultantes de encontros – de corpos, de alma”, escreve Hikiji na abertura do livro.

No primeiro capítulo do livro, a autora revisita e compartilha os modos de criação conjunta com Alessandra, sua interlocutora em um projeto social de ensino artístico promovido pelo governo do Estado de São Paulo. Ela trata das questões de construção dos sujeitos para e nos filmes, além de refletir sobre o fazer musical de Alessandra. No segundo capítulo, a antropóloga explora o sonho rouchiano do filme como uma etnografia compartilhada. Ela tece sua reflexão a partir da experiência de pesquisa em Cidade Tiradentes, onde colaborou com Daniel Hylario, residente do distrito. A colaboração envolveu desde a pesquisa e roteirização do filme, até a possibilidade do próprio interlocutor retratar seu cotidiano por meio da câmera-bastão – linguagem proposta pela cineasta Eliane Caffé, que permite que os próprios protagonistas utilizem os gravadores para registrar as situações do seu ponto de vista.

No capítulo intitulado “Fabrik Funk: improvisação, musicar e fabricação na etnoficção”, a antropóloga retoma sua aventura pela etnoficção, ainda em Cidade Tiradentes. Dessa vez, seus interlocutores interpretam papéis próximos aos de suas vidas reais e participam ativamente de todo o processo criativo.

No capítulo final, Hikiji explora os filmes produzidos durante o projeto temático da Fapesp O Musicar Translocal – Novas Trilhas para a Etnomusicologia, coordenado pela professora Suzel Reily, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do qual a docente da USP foi uma das pesquisadoras principais. Foi nesse projeto, em 2016, que Hikiji começou a investigar o musicar de artistas africanos na cidade de São Paulo, seus processos de cocriação e fazer artístico do outro lado do Atlântico. Essa linha de pesquisa levou à produção do filme São Palco – Cidade afropolitana, premiado como melhor longa-metragem na 14ª Mostra Ecofalante de Cinema.

“O cinema não é só visual e sonoro, ele é tátil. Quando uma coisa te emociona, você fica tocado, você se arrepia. O filme é potente para mostrar, refletir e pensar fenômenos da ordem expressiva e da música”, afirma a antropóloga.

O livro Filmar o musicar é resultado da tese de livre-docência defendida pela professora em 2022. Foi publicado por meio do Edital de Apoio à Publicação de Livros Digitais da USP e compõe a coleção ABCD Agenda 2030, que promove acesso livre a publicações alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas. Ao fim da leitura, o leitor tem acesso aos links para assistir aos filmes mencionados ao longo da obra.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP em 01/09/2025, às 15:52. Leia o original aqui.

Acesse o livro gratuitamente no link: https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1658