Autoria: Maykon Cruz Almeida • Bolsista de Jornalismo Científico do LISA
Revisões: Rose Satiko • Coordenadora do LISA | Vanessa Munhoz • Comunicação do LISA
Arte/Divulgação: Carlos Eduardo Conceição • Bolsista de Divulgação Cientifica do LISA
Publicação: 03/06/2025
De que forma a universidade pode se aproximar de saberes afro-brasileiros? Como conhecer e difundir a influência das práticas culturais afro-brasileiras em áreas como a música, a dança, e o teatro? As atividades de cultura e extensão universitária são um dos três pilares que formam a vida universitária. Ao lado da pesquisa e do ensino, as atividades extensionistas são fundamentais para o diálogo entre academia e sociedade. Por meio de programas de ensino, difusão e outras atividades relacionadas, a universidade pode manter e fortalecer o vínculo com diversos segmentos sociais, com atividades majoritariamente interdisciplinares, que podem ser realizadas fora das salas de aula e laboratórios. O pensamento afro-brasileiro é o tema do curso de cultura e extensão O caminho do Alabê – Ritmos dos orixás e a música brasileira, que o Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP) tem promovido anualmente desde 2023.
A última edição do curso ocorreu entre os dias 12 de setembro e 14 de novembro de 2024, em parceria com o Teatro Popular Solano Trindade (TPST). As aulas foram ministradas por Vítor da Trindade, músico, mestre em etnomusicologia pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do TPST, e por Elis Sibere dos Santos Monte Trindade de Souza, professora de dança afro-brasileira, coreógrafa e coordenadora cultural do TPST, sob coordenação de Rose Satiko Gitirana Hikiji, professora livre-docente do Departamento de Antropologia da USP (DA-USP), coordenadora do LISA e do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras da USP.
O curso abordou os ritmos dos orixás, danças, músicas, corporalidades, manifestações e influências na musicalidade brasileira. Como atividade extensionista, o curso reforça o papel da universidade de se abrir a diversos setores da sociedade, oferecendo subsídios para o cumprimento e fortalecimento de iniciativas de diversidade e inclusão e da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da "História e Cultura Afro-Brasileira" nas escolas do país, ampliando o escopo das atividades, e tornando-as meios para a valorização da herança cultural africana e afro-brasileira.
Segundo Vitor da Trindade, “o curso veio da necessidade de divulgar a profissão do Ogan como sacerdote detentor do conhecimento sobre os tambores dos Orixás e o ritual do Candomblé. Devido ao desconhecimento e apagamento deste profissional em relação, principalmente, à influência profunda de sua musicalidade sobre a música brasileira num todo”. Segundo ele, as atividades desenvolvidas durante o curso objetivam discutir de forma respeitosa com nossa ancestralidade e o possível futuro da religião que reflete a comunidade negra no trabalho, lazer e relações familiares.
Cultura e Extensão
Apesar da atual incompletude quanto à implementação das atividades extensionistas, elas datam da segunda metade do século XIX. Em 1871, a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, possivelmente, foi a primeira a implementar formalmente cursos de extensão a serem ministrados por docentes. Em 1988, ao criar a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, a Universidade de São Paulo trouxe avanços no que tange a extensão dentro da instituição e no Brasil. Ainda que, diferente do Estatuto de Fundação de 1934 e do Estatuto de 1969, em 1988 a palavra cultura tenha sido suprimida, a criação da pró-reitoria demarca um momento de maior atenção e dedicação a estas atividades que corroboram para o desenvolvimento da relação entre a universidade e a população ao “estender à sociedade serviços indissociáveis das atividades de ensino e de pesquisa", como destacado no Estatuto de 1988.
Acerca disso, no artigo intitulado A Cultura e a Extensão como motivação da atividade universitária, Adilson Avansi de Abreu, pró-reitor de cultura e extensão na USP entre 1997 e 2005, afirma: “A Universidade é, portanto, antes de tudo, uma instituição voltada para a cultura, em todas suas formas de manifestação consubstanciadas no saber e nas formações profissionais derivadas”. Dessa forma, também é um meio para difusão de culturas e saberes subalternizados, ao qual a universidade se mostra como um pólo aberto para o acesso a outras culturas.
A extensão universitária como promotora da herança afro-brasileira e dos saberes ancestrais
Herdeiro do legado da Família Solano Trindade, Vitor da Trindade é filho de Raquel Trindade, ou A Kambinda, como era artisticamente conhecida, pintora, escritora e ensaísta, coreógrafa, carnavalesca, que inaugura em 1974, após a morte de seu pai, o TPST, uma continuação do Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado por Solano Trindade na década de 50. Avô de Vitor da Trindade, ele foi um expoente da literatura afro-brasileira, multiartista negro brasileiro que atuou como poeta, ator, teatrólogo, pintor, incentivador das culturas populares e militante do Movimento Negro e do Partido Comunista. Assim como sua esposa, Maria Margarida da Trindade, coreógrafa, terapeuta ocupacional, colaboradora do trabalho da psiquiatra Nise da Silveira e cofundadora do TPB.
Além de ativista social e política, Raquel Trindade foi pioneira na implementação dos cursos de extensão na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Convidada a ministrar aulas sobre Teatro Negro no Brasil e Sincretismo Religioso, ao se deparar com apenas um aluno negro, ela propoe a abertura do curso para funcionários e comunidade externa, o que leva um grande contingente de artistas negros a integrar a turma. Segundo Vitor, “deste curso de extensão saiu o Urucungos Puítas e Quijengues grupo de pesquisas e tradições afro descendente que mantém em Campinas o Samba de Bumbo e outras manifestações culturais”. Além deste, Raquel também ministrou na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) o curso de extensão Identidade Cultural Afro-brasileira.
Atual diretor do TPST, Vitor da Trindade é Ogan Alabê Omoloyê do Ilê Axé Jagun, professor, músico e mestre em etnomusicologia pela Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA-USP). Ao lado de sua esposa, Elis Trindade, Ekedji Abian do Ilê Axé Jagun, pesquisadora, licenciada em dança pela Faculdade Paulista de Artes, juntos, eles dão continuidade a metodologia oral e autodidata desenvolvida pelos seus antepassados.
Detentor de extensa produção e pesquisa acerca da profissão do Ogan e autor de obras que discutem o papel do sacerdote no Candomblé e suas influências na música brasileira como: Oganilu - O Caminho do Alabê e O Ogan Alabê - Sacerdote e Músico, Trindade também dedicou sua formação como mestre a partir desses estudos, culminando na dissertação: “O Ogan Otum Alabê: sacerdote e músico percussionista da Nação Ketu no Ilê Axê Jagun”. Nela o pesquisador analisa o Ogan Otum Alabe, que ele define como um sacerdote e músico percussionista, dentro do Candomblé ao mesmo tempo que apresenta um recorte da Nação Ketu, representada pelo Ilê Axé Jagun, a qual Trindade faz parte, e onde ele apresenta o elemento principal de sua pesquisa, o Ogan Otum Alabe William Eduardo dos Santos.
Atividades de cultura e extensão como O caminho do alabê trazem para dentro da universidade temas historicamente silenciados. Ao longo das 10 aulas realizadas presencialmente, os encontros desenvolveram diversos temas, como a atuação e a luta da Família Trindade e sua estreita relação com a promoção e resistência da cultura, literatura, religião e música afro-brasileira, a organização do Culto aos Orixás, a intolerância religiosa e formas de resistência, as funções do Ogan, danças, instrumentos, ritmos e corporalidades dos orixás. Segundo Trindade, a universidade “é a responsável pelo futuro do país, pois possibilita a criação de ferramentas que auxiliem as pessoas, em primeiro lugar, a se conhecerem racistas, e depois pensar em meios antirracistas”.
Silvana Gorab, ex-aluna do curso, destaca seu interesse na realização de cursos e a importância deste na abordagem dos saberes ancestrais sob vieses decoloniais e antirracistas, as reflexões proporcionadas acerca da musicalidade dentro da religião na sociedade brasileira e a produção de conhecimento acerca de comunidades e crenças marginalizadas.
Elis Trindade, que ministrou o curso, ao lado de Vitor da Trindade, é pesquisadora intérprete do Bando Macuas Cia Cênica, onde desenvolve trabalhos relacionados à ancestralidade, à vida e à morte. Também é professora do curso de Dança Afro-brasileira Contemporânea da Escola de Bailado da Secretaria de Cultura de Taboão da Serra e realiza pesquisas acerca de Maria Margarida da Trindade, avó de Vitor da Trindade. Para Elis, a dança compreende mais do que a repetição coreografada de movimentos corporais no curso O caminho do alabê, mostra que há um diálogo entre a pessoa que dança e o tambor, ou seja, há uma conversa entre os dois e uma troca naquele momento.
Elis considera que trazer o curso para dentro do ambiente universitário é essencial para a valorização dos conhecimentos ancestrais e para sua difusão a partir da universidade. Ao difundir esses saberes por meio da academia e não somente nos grupos sociais afetados, coloca-se em evidência um grupo de pessoas invisível para a academia.
Para mais informações sobre as atividades realizadas no LISA e no Teatro Popular Solano Trindade, acesse: https://lisa.fflch.usp.br/aconteceunolisa e TPST . Para saber mais sobre as atividades de cultura e extensão da USP, acesse: https://prceu.usp.br/. Para conhecer mais sobre o curso, O caminho do Alabê – Ritmos dos orixás e a música brasileira, acesse: https://lisa.fflch.usp.br/node/13114.