Por: Maria Eduarda Mayumi Iryu de Melo Pimenta • Bolsista de Jornalismo Científico do LISA
Revisões: Sylvia Caiuby Novaes • Docente e Fundadora do LISA | Vanessa Munhoz • Comunicação do LISA
Arte/Divulgação: Carlos Eduardo Conceição • Bolsista de Divulgação Cientifica do LISA
Publicação: 15/07/2025
A memória é mais do que um conjunto de registros sobre o passado - ela é um campo de disputas, afetos e sentidos em constante transformação. Quem pode narrar a história? O que merece ser lembrado? Onde e como os vestígios do vivido são guardados? Essas são algumas das questões que atravessam o trabalho do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP), que atua na preservação, organização e difusão de acervos audiovisuais e documentais ligados à antropologia e às ciências humanas. Mais do que conservar materiais, o LISA cuida de narrativas, subjetividades e modos de ver o mundo, fazendo da prática arquivística também um exercício ético e político.
Desde sua fundação em 1991 por Sylvia Caiuby Novaes, o Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) consolidou-se como um importante centro dedicado à preservação e produção de materiais audiovisuais ligados às ciências humanas. O laboratório dispõe de uma infraestrutura especializada, que inclui espaços para armazenamento cui dadoso dos acervos, um auditório para exibições e ilhas de edição para o tratamento técnico dos arquivos. As coleções abrangem imagens, gravações em vídeo e arquivos sonoros provenientes de pesquisas com populações indígenas e diversas outras comunidades. Além de preservar esses registros, o LISA tem uma preocupação constante em garantir que os conteúdos estejam acessíveis não apenas ao público acadêmico, mas também às próprias comunidades envolvidas, promovendo uma relação colaborativa e respeitosa com os detentores dessas memórias.
Essa dimensão ética aparece de forma contundente nas reflexões de Leonardo Fuzer, responsável pelos acervos do laboratório. Ele observa qu e, “por se tratar de um ambiente de pesquisa, os arquivos do LISA foram adquiridos e documentados para servir primariamente à academia, mas não posso deixar de pensar no impacto em potencial que eles possam ter nas comunidades nas quais essas imagens foram produzidas. Fotografias, desenhos e grafismos produzid os por populações indígenas são importantes instrumentos de pesquisa, mas não deixam de ser registros de pessoas, objetos e rituais, representações de entes queridos, trabalho duro e cultura dessas populações que, não raro, pouco acesso têm aos espaços que guardam os registros de sua memória.”
O trabalho arquivístico no LISA envolve um processo técnico rigoroso e cuidadoso, realizado principalmente por bolsistas do Programa Unificado de Bolsas (PUB). A primeira etapa é a catalogação dos materiais, momento em que cada item do acervo - sejam fotografias, vídeos, ou registros sonoros - é identificado, descrito e inserido em bancos de dados que permitem sua posterior localização e consulta. Esse processo demanda atenção não apenas às características técnicas dos arquivos, mas também ao contex to de produção e às informaçõe s que acompanham cada registro.
Em seguida, os materiais passam pela higienização, uma etapa essencial para a preservação física dos suportes originais. Fotografias, fitas e documentos são limpos manualmente com materiais adequados, garantindo que fungos, poeira ou outras impurezas não comprometam sua durabilidade. Por fim, os acervos seguem para a digitalização, um processo que requer equipamentos específicos e conhecimento técnico para converter os registros físicos em arquiv os digitais de alta qualidade. Essa etapa visa não apenas a conservação, mas também a ampliação do acesso, permitindo que os conteúdos possam circular em ambientes digitais sem comprometer os originais.
Para quem vivencia esse processo no coti diano do laboratório, o aprend izado vai além da técnica. Luísa Kei, bolsista PUB, relata que “o trabalho aqui faz a gen te entender que, quando você pega uma foto ou um documento na mão, não está lidando só com um objeto, mas com uma história, com uma memória que precisa ser cuidada com responsabilidade, porque possui, não só um caráter cultural e social, mas propriamente político, que eleva o debate da (re) significação dos itens e acervos.” Esse contato direto com os materiais não só desenvolve habilidades técnicas, como também desperta uma consciência sobre o valor simb ólico, histórico e afetivo dos acervos.
Todo esse trabalho resulta na disponibilização dos acervos no site do LISA, onde parte significativa do material pode ser acessada pelo público. A digitalização permite que imagens, vídeos e sons circulem para além das prateleiras físicas, ampliando as possibilidades de pesquisa, memória e reconexão com as histórias a li contidas. Ao tornar seus arquivos acessíveis online, o LISA reafirma seu compromisso com uma prática arquivística aberta, que valoriza o retorno às comunidades envolvidas e entende o acesso como parte fundamental da preservação.
Apesar do esforço contínuo e da dedicação das equipes, o trabalho arquivístico no LISA enfrenta desafios significativos, especialmente no que diz respeito à disponibilidade de recursos materiais. A conservação de acervos frágeis exige não apenas conhecimento técnico, mas também insumos específicos - como luvas, pincéis, caixas livres de ácido, papel mata-borrão e equipamentos apropriados para digitalização - que nem sempre estão prontamente disponíveis. Como muitos dos suportes são analógicos e já apresentam sinais de deteri oração, a ausência desses materiais compromete a eficácia das etapas de higienização e preservação. Essas restrições impõem um ritmo mais lento ao trabalho, além de demandarem da equipe uma combinação de paciência, criatividade e negociação constante com instâncias institucionais para garantir a continuidade das atividades.
Sobre esse cenário, Leonardo Fuzer reflete: “penso que esse drama atinge muitos acervos ditos 'pequenos' como o nosso. O trabalho de conservação, mais especificamente, é contínuo e sempre cresce, afinal os mater iais devem ser tratados sistematicamente, devem ser higienizados, digitalizados e acondicionados, ao passo que o espaço físico sempre diminui, já que novas coleções são incorporadas regularmente. A infraestrutura, materiais de consumo e tecnologias de armazenamento (tanto as analógicas quanto as digitais) são caras e a Unive rsidade, embora reconheça a importância deste trabalho, oferece poucas oport unidades para captação de verbas e investe pouco na contratação de pessoal qualificado.”
Como mencionado, essas atividades são realizadas por estudantes que integram o Programa Unificado de Bolsas (PUB) e outras modalidades de participação no LISA. Essa integração é essencial para a sustentabilidade do acervo, promovendo a formação de novos pesquisadores atentos à importância da memória histórica e da preservação documental. Ao envolver alunos de diferentes áreas, o laboratório fomenta um diálogo intergeraci onal que fortalece o vínculo e ntre o passado e o presente da universidade.
O trabalho do LISA insere-se em um contexto mais amplo de valorização da memória e das práticas culturais no ambiente universitário, contribuindo para a democratização das histórias e das vozes muitas vezes invisibilizadas nas narrativas oficiais. Por meio de eventos, oficinas e exposições, o laboratório não só preserva arquivos, mas também atua como um espaço dinâmico de produção e circulação de saberes, onde o patrimônio audiovisual é constantemente r evisitado e reinterpretado.
Essa dimensão formativa e crítica da prática arquivística também ap arece na experiência de quem faz parte do dia a dia do laboratório. Para Luísa Kei, bolsista PUB, trabalhar no LISA foi um exercício de repen sar o próprio sentido da memór ia e do papel da universidade: “O trabalho aqui me fez repensar o que é a memória, como se dá o acesso a ela e qual o papel da universidade. A gente percebe que preservar não é algo neutro, é escolher o que continua existindo no futuro.”
Neste sentido, o LISA configura-se como um espaço estratégico para a USP, integrando pesquisa, ensino e extensão e fortalecendo a consciência histórica da comunidade acadêmica. Ao contribuir para a construção de uma memória plural e inclusiva, o laboratório desempenha um papel fundamental na compreensão das dinâmicas culturais e sociais, reafirmando o arquivo como um campo vivo de disputas, afetos e sentidos.